quinta-feira, dezembro 30, 2004

ja vou atrasada


 

Vou sair de casa.

Ainda tenho o pijama vestido, as pantufas da minha mãe, o robe que o meu pai deixou ca em casa ha uns anos atrás.
Tenho a tua fotografia na porta do meu quarto, tenho a minha musica com ela a tocar, o monitor que o meu tio que esta em Angola me deu.
Tenho as argolas que a minha avó me deu naquele dia no hospital.
A foto a preto e branco foi a minha menina que me tirou...ano passado...nao sei dela desde esse dia, o pass-partour foi o meu primo que me ofereceu...ha quatro natais atrás, acho.
Em cima da mesa que o meu padrinho me comprou quando entrei na faculdade tenho o meu bloco. Preto, como os 3 anteriores a ele.
Dentro dele tenho o cheiro dos meus dedos e as linhas da caneta que perdi ontem.

Tenho também uma fotografia, da minha bébé, nem a vi nascer.

E tenho a casa vazia, o meu pai hoje nao me telefonou. As tartarugas hibernam, a televisão foi para arranjar, os livros ficaram pesados. Um deles foi-me emprestado, nunca to devolvi.

Tenho na mão um coração colado na capa do primeiro caderno preto. Feito com o plastico do teu maço de tabaco.

Tenho um pássaro de papel em cima do monitor, foi ele que mo deu.

E tenho ainda a cama por fazer. A janela fechada desde manhã. O cabelo despenteado, remelas nos olhos, pintas de chocolate na camisola.

Nocturne in E minor. Frederic Chopin.


(amanhã já nem tenho "até amanhã". Tenho "até pró ano", hoje tenho até ontem.Vou sair de casa...ja vou atrasada.)


30.12.04
*Mó

subtrai-se um oceano e dá nisto!


 Posted by Hello

quando se nasce na terra do sol não ha como esconder...

alguns dos "meus brasukinhas"...nao enganam ninguem c akele sorrisão!
já tão tatuados:)

quarta-feira, dezembro 29, 2004


 

Com as mãos geladas e a cabeça prestes a ferver.
Acabei de ligar o lume, pus a velha cafeteira cheia de água a aquecer. As folhas de eucalipto já estão dentro da chávena mas não lhes sinto o cheiro.

Está muito frio, hoje. Choveu o dia todo, ensopei o rosto de risos e bocejos, entupi os olhos com o brilho do sol hoje apagado. Agora ficou muito frio e ainda tenho o cabelo molhado. A lua vê-se daqui – não deve chover amanhã – mas também ela lançou mãos à cabeça e escondeu a testa. Foi lua cheia há três dias, acho.

A água borbulha. Desligo o lume e apago o rádio. São momentos como este que me marcam o tempo. Não sei que horas são, é isso que mais me fascina no escuro – a hesitação do tempo que não muda a intensidade da luz. São sons como o da água a estalar na chávena fria que me fazem estabelecer princípios e fins (que são princípios de outras coisas).
Estou no princípio do meu cambalear. Do vácuo nos ouvidos. Oiço-me respirar e oiço o espumar das folhas verdes na chávena negra.

Hoje não quero passar a noite sozinha.
Começo a enlouquecer com a demora.
O chá não arrefece, e tenho de ser rápida porque acabei de decidir que, pelo menos hoje, não vai ser este o momento que decide que é tempo de ir dormir. Agito as pernas, tenho o nariz a tremer como quando tenho ás vezes as sobrancelhas a palpitar, e dói-me cada vez mais a cabeça. Devo ter febre.
Fecho os olhos, abro-os outra vez e desisto do eucalipto. Bebo a água quente e esqueço-me dele no fundo agora verde da chávena preta.

Peguei nas chaves, abri a porta com muito cuidado para não acordar o céu – não pode ser dia antes de eu adormecer.
Saí, deixei o carro à porta e as chaves penduradas no portão, não fosse eu esquecer-me de qual casa é a minha. Com passos pequeninos, nos bicos dos pés, brinquei à macaca nos paralelos da rua. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos e os pés sem sapatos. O chão ainda estava húmido da chuva de hoje, soube-me bem a ânsia de não saber se salto sem escorregar, se escorrego sem cair, se ao cair sei como me levantar…sabia-me bem não saber se iria dormir.

Saltitei até picar o pé numa rosa – desencravei o espinho, pus a flor no cabelo ainda molhado e continuei a andar.
Encontrei, por acaso, um balão numa varanda. Era amarelo, meio vazio, devia estar esquecido desde o último aniversário.

- Onde vais?
- Vou encontrar quem queira a flor que tenho no cabelo.

Desamarrou-se da janela fechada e atou o fio que o prendia ao meu pulso. Estiquei o braço e fui com ele. Vi as luzes das pessoas sob os meus pés descalços, vi as luzes dos deuses sobre a rosa no meu cabelo.
Levou-me para longe, não me disse onde me levava.

- Não tens frio assim, sem sapatos?
- Não! Tu não tens medo de voar assim, sem asas?

- Ficas aqui, alguém há-de tomar conta de ti.

Deixou-me numa porta muito grande. Espreitei lá para dentro e vi muitas carruagens alinhadas, mas não vi ninguém. Andei devagarinho, com os olhos arregalados e as mãos nos bolsos. Tinha os pés descalços e o vácuo nos ouvidos – não vi ninguém.

Ao aproximar-me de uma carruagem, a porta abriu-se. Dei um salto para trás, depois sorri. Senti que alguém me via, achei então que devia brincar ás escondidas.
Entrei na carruagem e corri. Havia muitas cadeiras, todas iguais e todas vazias. Corria, e de dez em dez cadeiras, escondia-me. Contava até vinte em voz baixa e, como ninguém me encontrava, levantava-me e voltava a correr. Cada vez que corria, a carruagem crescia, outras adicionavam-se-lhe, sempre com cadeiras iguais…sempre vazias.

- 14, 15, 16, 17…

Parei de contar. Fiquei sentada e desisti de correr. As pernas latejavam e os pés estavam feridos de cansaço. Olhei em frente, tinha uma janela. As luzes passavam a correr, pareciam uma linha interminável, quase tão infinita como a carruagem vazia.
De joelhos, gatinhei até ao vidro, abri-o e pus a cabeça de fora.
Não havia vento. As coisas passavam a correr mas a carruagem estava parada, não tinha vento a pentear as árvores nem frio no meu nariz.

Doía-me a cabeça.
Lá em cima, as luzes dos deuses fitavam-me. Senti-me envergonhada...não se aparece descalço aos deuses… - mas fitei-os sem pudor.

Uma das luzes brilhava mais e crescia a uma velocidade muito grande. A princípio achei que era um avião gigante, só depois vi que não podia ser – se fosse um avião passava a correr como as luzes das pessoas.
À medida que se aproximava crescia, cada vez mais lentamente.
Fechei a janela num fôlego e fechei os olhos com força. Apertei as mãos e não abri os ouvidos. Uma corrente de ar abraçou-me o rosto e senti que tinha alguém comigo.

Abri o olho esquerdo com muito cuidado e olhei para a janela. Contei até vinte e, no último segundo, abri-a.

Sem tempo para pestanejar, entrou uma luz amarelada pela frecha aberta. Fechei-a muito rapidamente e senti um tremor. Olhei para baixo e vi, caída no chão, uma estrela muito dourada. Tinha o tamanho da palma da minha mão e era feita de papel transparente. Estava muito fria e tinha a luz intermitente. Segurei-a, abracei-a contra o peito e tentei que ela adormecesse. Contei-lhe histórias das pessoas, ela falou-me dos deuses, falou-me do frio e eu falei-lhe do ar condicionado.

Deitei-me no chão, descalça, abraçada a uma estrela que me entrou pela janela da carruagem vazia e infinita. Ouvi-a com muita atenção e comecei a ficar com cócegas nos olhos e com o queixo pesado.

Bocejei, adormeci. Ainda não era de dia.


Uma corrente de ar com aroma de eucalipto, uma claridade estranha em tons laranja, um calor nas mãos, um frio nos pés.

São nove da manhã e vinte segundos. Lá fora o dia é claro, não chove, cá dentro o lusco-fusco acabou.
Tenho o rosto deitado na mesa de pedra, o lápis que tinha preso no cabelo está caído no chão – o bico afiado picou-me o pé. A chávena preta, com fundo esverdeado, tresanda a eucalipto por todo o lado.

Dormi com os braços cruzados.
Entre eles e o peito tenho uma folha de papel em branco.




Papel, s. m. (do Cat. papel). (...) parte da peça teatral que compete a cada actor desempenhar.

Transparente, adj. 2 gén. (do Lat. trans+parente). (...)Fig. Que se percebe facilmente; evidente; claro.

Estrela, s. f. (do Lat. stella). 1. Astro que tem luz própria, parecendo sempre fixo no firmamento. 2. Distinto. 3. Sorte. 4. Fado. 5. Guia.


29.12.04
*Mó

terça-feira, dezembro 28, 2004


"false mirror" René Magritte  Posted by Hello

Não me venhas dizer que não sabias...
Tens-te esquecido de dizer "olá" ao espelho?

Foi natal há dois dias e ainda sinto o cheiro do bolo-rei que nem comi. Tenho uma prima com quatro anos, passei o natal com ela e com outras pessoas que neste momento pouco importam - o natal é das crianças, assim fizeram com que fosse.
Foi natal há dois dias e ainda tenho a barriga aos trambulhões com a náusea que todo o fantochismo do ritual (não tão tradicional como comercial) me provoca. Antes era diferente, quando era eu quem tinha quatro anos....era tudo tão a mesma coisa e tudo tão diferente...eu era tão igual ao que sou mas sem idade para SER, sem náuseas ou sorrisos conformados...só acções conformistas.

Mas não gosto de ficar assim. Só tenho esta vida e irrita-me olhar para a mágoa com que vejo os brilhos das ruas e as agitações dos corpos. Passo acima, passo abaixo.

Estou completamente escondida numa rua do Porto onde hoje o mundo converge em gritarias de passadas tropeçadas. Aqui ninguém me vê, exactamente no meio da rua. As montras são-me periféricas, por isso sei que sou a última coisa para onde vão olhar. Aliás, eu sou gente...e isso por si só é bastante para que não me vejam.

Amanhã é natal e vou passá-lo com a minha prima. Ela tem quatro anos e não sei se hoje alguém lhe disse "olá" no espelho.
Amanhã, perto da meia noite, vão inventar que existe um pai natal vermelho-capitalizável (irónico, não?) que traz prendas aos meninos. Ou por outra, vão inventar que as prendas foram trazidas (sempre me fizeram acreditar que a acção protagonista existe no sujeito: "as prendas foram trazidas").

E o pai natal? Nunca me disse "olá".
Nem nunca ficou sentado ao meu lado, no meio da rua.

É isso que me dá náusea (não só isso, mas também): se o velhote aqui estivesse comigo ninguém o iria ver, ou por outra, talvez o olhassem e em última hipótese podia ser que lhe perguntassem se já tinha as prendinhas todas...

Mas amanhã é natal, e vou fazer o que manda a tradição... vou sorrir quando a minha prima abrir os presentes em euforia.

Foi natal há dois dias e ainda sinto náuseas por dentro. Ninguém viu o por do sol, ninguém deu a aurora a ninguém. Nem eu.

Tens-te esquecido de dizer "olá" ao espelho?

Não me venhas dizer que não sabias...que nunca pensaste que aquele eras tu.
Foi natal há dois dias, lembraste de mim sentada contigo no meio da rua? Ninguém nos viu?
Também, aposto que não trazias nenhum espelho contigo para poderes dizer "olá".


27.12.04
*Mó

[ms. 1915?]
NÃO SEl QUEM SOU, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenha.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

Fernando Pessoa

segunda-feira, dezembro 27, 2004


 Posted by Hello

Eu sei que vou ficar sozinha.

Sei que tenho andado a vida toda atrás do que quero ter e a fugir do que querem que tenha.

E nunca quero o que me querem dar…porque acredito que o mais importante naquilo que é meu é que o seja porque fui eu quem o conquistou.

Tudo o que me dão é dos outros, não é meu. É-me oferecido, não me é merecido.

Sei que vou ficar sozinha, porque é atrás do meu lado inverso da costura que tenho corrido todos os dias.
O que eu quero não existe fora, porque se assim fosse o que eu queria já seria de alguém. Já teria um rosto e uma materialização que não fui eu quem a fez.
Assim, o que eu queria já iria ser de quem o materializou para que hoje eu o pudesse ver. Já não seria meu, porque uma das coisas mais básicas para que algo seja meu é que não seja de mais ninguém.

Sei que vou acabar sozinha.
E sei que é completamente mentirosa essa solidão.

Vou mentir sempre que estou sozinha para que assim possa querer eternamente mais alguma coisa. Fazer de conta que nada tenho é motivo para me querer a mim. Fazer de conta que não dormi para não pensar a que horas acordei, para não completar o raciocínio das longas horas de insónia que não me deixaram fechar os olhos em paz.

Esta noite vou ficar completamente sozinha.
Vou falar com os bonecos de porcelana que nunca vi, vou apagar o sol que está preso no tecto e que acende e apaga quando eu quero… vou fazer de conta que quero dormir só para poder ficar mais tempo acordada, como se dormir não me fosse oferecido pelo meu corpo. Vou lutar pelo sono para que o sonho seja só meu, para que ninguém que exista apareça durante a noite, para que o fraquejar das pálpebras não me venha cobrar imagens recordáveis amanhã.

Vou passar a noite em branco, e vou acreditar que fui eu quem quis o amanhecer.
Vou dormir com os meus fantasmas, que são só meus, que nunca vi…que nunca ninguém mos deu.

Esta noite não sei o que vou fazer.
Vou brincar ao peixe grande e fazer anedota dos segundos que passam uns atrás dos outros…sempre certeiros e sem tropeçarem…até ver.

É que esta noite não sei se vou ficar sozinha… porque esta noite não sei se vou ter noite…parece que o céu quer-ma oferecer.



26.12.04
*Mó

sábado, dezembro 25, 2004

quinta-feira, dezembro 23, 2004

rumo na vida, um beijo, um beijo.

Digas o que disseres, com as palvras que disseres, com a alma que tiveres nesse segundo preciso. Que tu tanto´tens alma como tens máscara, como não tens nada e nessas alturas é a tua alma também que não tem nada.
"Cheio de manhas, ele vive cheio de manhas e manobras", dei por mim a pensar isso, até. Penso de mais, é o que é...

Digas o que disseres, com as palavras que disseres, não quero saber mais.
As palavras que existiram e que foram nossas sê-lo-ão para sempre...carregadíssimas de alma para sempre. Quanto menos fores mais elas te magoarão. Quanto mais falares, digas o que disseres, elas vão ficar eternizadas.
Como as histórias de amor que perduram...aquelas que acabam e aparece na tela o nome dos actores.

Como as bandas sonoras que alimentam os sonhos...

Digas o que disseres...com as palavras que disseres...sumo na vida é o que eu te desejo.


Todos vieram
ver a menina
ao primeiro gomo de tangerina
menina atenta
não experimenta
sem primeiro
saber do cheiro
o sabor dos lábios
gestos sábios

Fruta esquisita
menina aflita
ao primeiro gomo de tangerina
amarga e doce
como se fosse
essa hora
em que chora
e depois dobra o riso
e assim faz seu juízo

Sumo na vida
é o que eu te desejo
rumo na vida
um beijo um beijo


Ah, que se lembre
sempre a menina
do primeiro gomo de tangerina
p'la vida dentro
é esse o centro
da parcela da vitamina
que a faz crescer sempre menina

A terra é grande
é pequenina
do tamanho apenas da tangerina
quem mata e morra
nunca percorre
os caminhos do que há de melhor
nesse sumo
a vida, gomo a gomo

Sumo na vida
é o que eu te desejo
rumo na vida
um beijo
um beijo



Sérgio Godinho - o primeiro gomo da tangerina

Posted by Hello

Tiras o carro da garagem todas as manhãs.
Só depois de alguns minutos é que te dás conta que os vidros estão completamente envoltos em orvalho e poeira.

Dizes que os carros não se lavam no Inverno, que a sujidade protege do frio, as poeiras abafam as epidemias. Sabes bem que não as curam, mas insistes em sair sempre com o embaciado encravado entre o pó.

Todas as manhãs bocejas ao arrancar, tremelicas as pestanas ao primeiro semáforo que apanhas – 139 segundos exactos separam-no da tua porta. Fazes a primeira rotunda e sais na terceira rua…derrapa-te sempre o carro ao fazer a curva, e pensas sempre que para a próxima vais ter mais cuidado.
Desces pela mesma rua, a farmácia tem sempre as luzes acesas e só ao chegares à segunda rotunda (passaram-se entretanto 164 segundos desde a primeira) é que te dás conta que não tinhas o rádio ligado.
Como todos os dias, acabas por ligá-lo, mas só uma dezena de quilómetros mais tarde é que reparas na música que está a tocar.

Todos os dias inventas histórias.
Fazes de conta que tens imensas coisas para tratar, que tens muita gente à tua espera, que o carro atrás de ti te persegue e tens de fugir, que cinco carros mais à frente chamam por ti e tens de te apressar. Aceleras quando podes, quando não podes buzinas só para que todos saibam que tens imensas coisas para fazer.
Paras no enésimo semáforo, dobras a curva número 8 e mudas de estação. Carregas furiosamente em todos os botões, repetes o procedimento até desligares o rádio:

-Não dá nada de jeito…

Reparas todos os dias que tens pó no tablier, que ainda não sacudiste as migalhas do estofo, que afinal a a mancha das calças não saiu. Reparas que deixaste o relógio em casa, que tens ainda remelas nos olhos, ris-te para o espelho retrovisor só para confirmar se lavaste bem os dentes. Reparas todos os dias que estás pálida, e depois desse sorriso higienista, decides dar bofetadas no teu próprio rosto para ver se ficas com um ar mais saudável…

Todos os dias fazes de conta que tens sempre milhões de coisas para tratar, que nem tens tempo para respirar.
Passas pela ponte, pelo túnel, pela paragem do autocarro. Décimo sexto semáforo ao fundo…e está verde…amarelo… Aceleras para não teres de parar, para poderes passar antes do vermelho…afinal, tens tantas coisas para fazer…

Aceleras muito, para num instante apenas torceres os braços agarrados ao volante, travares a fundo e galgares o passeio.

Ela devia ter uns 6, 7 anos talvez.
Não sabes como não a viste a descer o passeio com tanta delicadeza. Tinha uma flor nos cabelos ondulados, uma violeta presa a um gancho negro…da cor do carvão. Tinha um vestido com saia de roda, vermelho, e uns sapatinhos de verniz muito brilhantes.
Não te lembras se estava sozinha, não fazes ideia se nessa hora tinhas alguém atrás de ti a perseguir-te ou se tinhas milhões de coisas a tratar. Mas lembras-te da forma como ela te sorriu… como levantou os olhos do chão, os arregalou, e com a doçura mais verdadeira que já tinhas visto, sorriu-te.
Tinha a mão esquerda levantada, o braço esticado e a palma virada para ti, os dedos apontados para o céu…tu foste capaz de lhe ler os lábios:

- Tem calma…

Congelaste naquela imagem.
Incandiaste os olhos com a luz de um sorriso e só tiveste tempo de virar o volante, travar a fundo, galgar o passeio.



O motor foi abaixo.
O rádio desligado.
Chovia muito, sabias que derraparias em todas as rotundas e que faltavam 66 segundos para o próximo semáforo.

-É maluca! Ainda mata alguém!

Saíste do carro num impulso, chovia menos, cada vez menos.
Olhaste para trás, não viste ninguém no passeio.
Os carros buzinavam muito, as pessoas berravam muito dentro deles, abanavam a cabeça em sinal de condenação… e não viste ninguém no passeio. Nem vestígios de um vestido vermelho, de saia rodada.

Verde, amarelo, vermelho, verde, amarelo, vermelho… Atordoava-te a velocidade com que as cores se atropelavam, não entendias mais porque é que as pessoas corriam tanto!
Numa náusea que não pensaste em explicar, deixaste de saber o que fazias ali, que carro era aquele – tu nunca quiseste aprender a conduzir!
Não sabias porque é que as pessoas fugiam…teriam quem as perseguisse? Talvez tivessem milhões de coisas para fazer… sabe-se lá…

Não sabias quanto tempo tinha passado desde a última vez que reparaste como ficam lindas as ruas quando o sol brilha no chão ainda molhado…
E não querias saber.

-Está linda a manhã, hoje…



23.12.04
*Mó

terça-feira, dezembro 21, 2004

Passa-se qualquer coisa lá fora.

Passa-se qualquer coisa lá fora.

Fechei as luzes há umas horas atrás, não sei quanto tempo passou entretanto. Lembro-me que tinha frio, e foi esse frio que me fez esquecer a luz e cerrar os olhos até ver o escuro mais escuro que eu sabia ser capaz.

Encolhi o corpo e deixei-me escorregar pela parede abaixo até ficar sentada no chão. Com as pernas dobradas, abraçadas pelos braços, parei de tremer. Cantei aquelas canções que me cantavam no infantário na hora da sesta, aqueci o corpo todo com o vapor quente que saía com as palavras e deixei de sentir frio.

Bateram à porta, não me mexi.
Tive medo de ter frio com o ar que vem sempre contra mim quando sigo os pés em passadas. Deixei-me ficar agarrada ás pernas, cantei mais alto e mais alto até deixar de ser perceptível o som daquela mão na madeira da porta.
Cantei, cantei, cantei cada vez mais alto: “era uma casa muito engraçada”…cantei até não suportar a minha voz já metamorfoseada em gritos de desespero: “NÃO TINHA TECTO…” - num sufoco de frio e de medo.
E cantava, e já não cantava porque ninguém canta assim… ninguém canta quando não se consegue ouvir:
“NÃO TINHA NADA!”

Não desistia, já nem conseguia controlar o tom esganiçado, não distinguia a minha voz dos gritos da alma que fiz sempre por calar. Repetia incessantemente a mesma canção, cada vez mais alto, cada vez mais incontrolável…

Acho que deixei, a determinada altura, de cantar palavras. Cheguei a um ponto em que só era capaz de cuspir sons descomprometidos com qualquer significado.

Gritei até não poder mais…gritei, gritei, gritei, GRITEI…até….

(Silêncio).

Como o interruptor que se desliga num toque e fica escuro.
Silêncio profundo.
Fiquei sem voz. Pior, fiquei sem som.
Deixei de falar para fora. Deixei de ouvir para dentro.
Fiquei afónica de sentidos num instante apenas…como o interruptor que se desliga num toque e fica escuro.

Não oiço baterem à porta. Não oiço nada, nem a música que talvez ainda esteja a cantar, mas que não sei onde. Perdi a voz das coisas todas e não sei quando.
Já não sei quando é que ouvi a minha voz pela última vez…apetecia-me lembrar dessas coisas todas que agora não falam mais.
Como eu queria que batessem à porta, que dissessem para não cantar tão alto, que as pernas ainda me tremessem e que eu tivesse medo do frio.
Como eu queria.


Tocaram-lhe no ombro, devagar. Tinha os olhos enrugados pela força que os fechou, e tinha uma lágrima presa que ameaçava cair. Abriu-os num instante e em tom assustado só conseguiu perguntar:

-Passa-se alguma coisa lá fora?
-Passa-se…amanheceu…


20.12.04
*Mó

domingo, dezembro 19, 2004

foi num dia de nevoeiro que te vi.

Foi num dia de nevoeiro que te vi. De costas, debruçado. Só reparei que entre o escuro existia alguém que nunca tinha visto. Tinha ido de férias e quando voltei apresentaram-te como um novo colega de trabalho.

Achei fantasiosa a tua postura, confesso. O jeito como te movimentavas, com esse quase metro e noventa, sempre esticado…a olhar de cima. O jeito como evitavas sorrisos gratuitos – só enrugavas os olhos com piadas subtis. O jeito como falavas, como esperavas o teu tempo para falar, como ouvias para depois dizeres coisas tão acertadas.

Impressionaste-me.

Não to diria agora se não estivesses já tão longe, não te confessaria, por exemplo, que me dava muito prazer ver-te fumar. Tudo em ti evaporava sedução.
E não eras bonito, não me acredito que algum dia tenhas sido. Tinhas o cabelo muito fino, muito negro, muito liso, que brilhava muito e com muita facilidade ficava oleoso. O teu rosto era estranho, mas não era bela a radicalidade dos teus traços – tinhas a ossatura do rosto bem vincada, um nariz grande, uns lábios nem muito grossos, nem inexistentes, mas que passavam despercebidos na tua desproporção.

Mas tinhas o sorriso mais encantador que eu já tinha visto… e tive de esperar algum tempo para te ver sorrir-me….
Lembro-me, nesse dia, puseram-nos a jantar juntos, conversámos muito. Partilhámos algumas dúvidas e episódios que faziam parte da nossa rotina e que quando tornados cúmplices ganhavam uma tonalidade satírica.

Gostei de ti nesse dia. O encantamento existiu acho que mesmo antes de saber quem eras, porque posturas como a tua sempre me entusiasmaram.

Falávamos descomprometidamente, quando nos esbarrávamos entre a copa e o balcão, ou quando calhava de partilharmos outras refeições.

No dia em que me vim embora, sem saberes de nada, entraste-me pela porta e deixaste um papel dobrado. Escondi-me precisamente no sítio onde nte vi pela primeira vez, debrucei-me e li-o. Li-te a ti e revi-me no que eras.
Só to digo agora porque sei que estás longe: eu chorei.

Mexeste-me de dentro para fora como se me tivesses atado fios e só me dei conta disso quando começaste a brincar ás marionetas e eu vi os meus membros dançarem ao teu ritmo.

Estava presa a ti. Sabia disso.

Sorrias mais frequentemente, trocava-mos conversas paralelas e desafios que nos faziam ir atrás do que éramos. Eu fazia-te reencontrares-te, tu mostravas-me técnicas de voo que eu ainda não sabia.

Fazias-me bem. De uma forma tão pura. Fazias-me eu, a cada momento contigo aprendia a apaixonar-me por mim…e tu ias sendo parte de mim. Ias soltando amarras e ias-me amarrando.

Acho que foi aí que a nossa história foi perfeita:
Amámos como quem solta as cordas das asas, mas desaprende de voar sozinho.

Hoje és uma sombra de ti. E só porque sei que estás longe é que te digo que sou a mesma, mas sem o teu sorriso…sem ti para me puxares pelos fios amarrados e para me fazeres dançar.

É que eu “só queria dançar contigo…”.


18.12.04
*Mó

sexta-feira, dezembro 17, 2004

"olhos de cigana oblíqua e dissimulada."

"(...)

- Você jura?

- Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada."
Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim.

Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram.
Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.

Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.
A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno.
Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe,- para dizer alguma cousa,- que era capaz de os pentear, se quisesse.

- Você?

- Eu mesmo.

- Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

- Se embaraçar, você desembaraça depois.

- Vamos ver.

(...)"

"Dom Casmurro" - Machado de Assis

terça-feira, dezembro 14, 2004

..."mas há alturas em que a dor é agonia"...

Cortaram-me os braços,
continuei a pensar,
a desenhar outros traços
que não podendo soletrar
imaginei e conspirei
ao ver-te passar.

Arrancaram-me os olhos,
não deixei de te ouvir.

Dancei ao ritmo de pulsações,
do bater de dois corações
que não se conseguem distinguir.

Escreveram-me no fado
(com as forças que não tinha)
um manual de sobrevivência.

E deixaram-me à tua experiência.
Enjaulada no dom que sou…

Fechada neste laboratório
num estado transitório
do corpo que me manipulou.

Sugam-me os sentidos…
os dedos, um por um…
e faço-os renascer
feridos.

Violam-me a pele escamada
e recubro-me,desenhada.

Levem, levem-me tudo!

Mas não me matem aos pedaços!
Posso reconstituir os meus braços
ou os olhares de veludo,
mas há alturas em que a dor
é agonia…

e as Salamandras também morrem, meu amor…
as Salamandras também morrem um dia.

12.07.04
*Mó

...isto é voltar sem dor nem mágoa....

Tantos episódios que se coadunam com um conjunto de frases. Ornatos...
E pétalas arroxeadas que pautam respiraçoões mais ou menos ofegantes...

Afinal....o oxigénio que nos faz viver é o que nos mata.

Um crime à minha porta. Um passo que ouvi a desfocar depois do estrondo de quando saiste e mais uma vez não te lembraste que é de alumínio essa porta.
Um "contra-passo" depois.
E não vim da rua de matar algúem.

Só porque quem morre não mata.


Obrigada Ricardo....pela "Lealdade" da primeira frase. Ou da primeira estrofe....whatever. Já tanto faz. Mais um sinal de fumo ou dois e chove outra vez, né??? :)

*Mó


Um Crime À Minha Porta - Ornatos Violeta

Isto é voltar sem dor nem mágoa
Isto é só mais uma razãopra estar sem ninguém por ti.

Vim da rua de matar alguém,
E foi assim que eu matei por bem.
As razões: Não há razões!
É que eu não tenho mais amor pra dar,
E a ninguém!

Quero não amar p'ra não cair,
Não vou dar,
E não vou ter a mesma forma de estar.

Tudo bem vá durar um dia,
Faça agora tudo o que eu fizer.
Quero estar voar e só contigo,
Mas só enquanto eu quiser.

Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.

Vim da rua de matar alguém,
Agora espero o sol.
Agora espero só
quem não dá para ter quem não dá,
pra dar um brilho ao ego
e ter assim o cheiro do que um dia,
seria o nosso dia...
Daquilo que eu faria.

Agora sinto a dor,
Agora sinto a dor,
por quem matei,
por ter feito amor.

Qual dor?
Eu só faço o que eu quero.

Eu não penso em ninguém,
por pensar.
Meu nome é partir,
E voltar.

E tudo por quem?

Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.

Levo-me ao inverno,
pela mão da minha culpa,
tenho a força para ser mais forte
e roubo-te a desculpa.

Eis a preocupação,
com uma qualquer situação anormal.

É triste o fim ser igual,
Para nós.
Estar nas nossas mãos,
o evitar simples da dor.
E qualquer dia me trás,
Até mim.

Qual a minha culpa
qual a sentença?
Da lição não tiro nada,
mas que o crime só compensa.

E se eu matar,
logo pela madrugada?

Sobre esta forma de amar,
vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
vai de uma forma de estar.

Eu não sou normal.
Eu não quero ser igual.
Isso é virar um homem
que eu não sou.
(Sou) ouro em teu olhar.
Serei o pai do teu prazer até ao dia
em que o amor for para nós: A ultima fatia.
E se o trago é difícil
e a veia entope,
só nos resta a nós os dois: A hemorragia.

Sobre esta forma de amar,
vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
vai de uma forma de estar.


domingo, dezembro 12, 2004

I fell in love with a violin...Yann Tiersen.


Posted by Hello

Sapato de Palhaço



Troco de passo,
tropeço.

Meço o estilhaço.

Confesso que não sei
o que faço.

Torço o braço
e não peço
o escasso aconchego
do regaço
que nego.

O compasso
que entrego,

onde encerro
este cansaço.

Num pedaço,
um recomeço.

Troco de passo.

Meço o estilhaço.

(finjo que esqueço
que tropeço).

*MóPosted by Hello

sexta-feira, dezembro 10, 2004

vou ter de te matar, meu amor.

Vou ter de te matar, meu amor. Quando no relógio baterem silenciosas as 24 horas, vou-te chamar. Espero que venhas logo, não te demores porque o tempo em que penso no não te ter depois desencoraja-me e faz-me recuar. E não tenho mais tempo para recuos. A vida segue em frente, e de tanto te querer comigo deixei de saber olhar para o caminho onde sigo e passo os dias a olhar o céu...passo as noites a fugir da lua, e tudo o que existe para além disso não me interessa.

Por isso, vou ter de te matar, meu anjo... meu amor. Vou afiar a borboleta que desenhei hoje e é com ela que te arranco da vida. Da minha vida.

Espero que venhas vendado para não me veres chorar. Espero que tragas uma venda a mais e que me tapes os olhos com ela para que eu não tenha de te ver partir. Não tragas os teus lábios, peço-te. São sulcos de magia onde mergulho de cada vez que pestanejo...sei que acabo por cegar se tiver de ler neles a tua despedida – “até sempre, princesa...”.
E não tragas as tuas mãos, nem os teus cabelos meio ondulados, de menino querubim... a tua barba tosca, mal feita, que me arranha o queixo e brinca ás cócegas até me tocar o umbigo... Não a tragas, meu amor.
Deixa esquecido o teu andar desajeitado e vem a voar. Não te quero ver tropeçar outra vez. Sei que se acontecer, vou correr até ti, tentar amparar-te e vou acabar por cair contigo...e não mais me levanto...não mais te mato.
Não tragas também a tua pele de linho, nem a tua respiração, nem o ritmo sinfónico da tua pulsação.

Não tragas nada e vem depressa.

A lâmina da arma que tenho em punho já está afiada. Pouso-a em cima da mesa onde jantámos ontem e espero por ti. Está frio hoje, mas o sol já avermelhado não desiste de aquecer o mar.
Agora, os dois devem estar de mãos entrelaçadas. Daqui não os vejo, mas oiço o cântico do divino que existe em horas como esta.

Desligo o relógio. Desligo-me do relógio que tenho dentro de mim e que bombeia o sangue que me torna diferente de ti. Eu saberei quando a meia noite chega, não quero a tortura de ver o tempo decrescente a cada segundo que passa...outro...e outro...tic.tac.tic.tac...morte lenta, a minha.

Contigo vai ser diferente. Quando chegares, vou-te embrulhar nos meus braços e vou derreter os teus dedos nas minhas mãos.

Mordo-te o lóbulo da orelha esquerda e digo-te em sussuro que te amo. Depois, conduzo-te de olhos vendados (eu e tu, como combinado) até à mesa de pedra. Pego na borboleta e rasgo-te a camisa lentamente... Gosto de ouvir o tecido mutilado. Passeio a lâmina pelas tuas costas, e quando não mais suportar a tortura, atiro a alma ao chão e rasgo-te o peito.

Sei que vai trovejar, sei que o mar vai trepar areia e corroer as ruas. Sei que vou morrer contigo e que o ácido das minhas lágrimas vai queimar o rosto que vês e não mais me reconhecerão. Sei que depois desta noite não vai existir o amanhecer, a alvorada será só o prolongamento iluminado de umas trevas que escolhi.

Mas vou ter de te matar, meu amor.

Já não suporto ouvir o mundo inteiro a apontar a minha esquizofrenia, não quero que me voltem a falar de sonhos, que me peçam para acordar. Não conseguem entender que é possível viver no sonho e passar de vez em quando pelo chão, que o que não existe não é necessariamente ilusão! Como tu, amor, que foste inventado por mim. Eles não entendem que também respiras e também sorris e também choras. E as tuas pulsações, as tuas lágrimas, os teus lamentos são tão mais reais que os deles. Tu és tão mais realidade em ti do que eles são neles...
És mais importante que qualquer pretexto, que qualquer contexto. És gaivota em dia de neblina...que não é pintora da cidade mas é capaz de fazer do Porto obra de arte.

Eu tive de te inventar para te tornar real, porque sei que é mais fácil criar-te de dentro para fora de mim a encontrar toda a tua perfeição em alguém.
“Ninguém é perfeito...” – mentira. Tu és. E é por isso que te mato.
Sei que me entendes porque és perfeito o suficiente para isso, porque a tua casa é o meu corpo, porque as tuas frases são as minhas palavras e o nosso mundo é a tua razão. Sei que me ouves porque te conto segredos enquanto durmo, e sei que a manhã é chuvosa quando chorámos a sonhar.

Vou ficar sozinha. Esta noite nem vou dormir para não saber o que é acordar sem ti.
Vou vaguear e vou encher a casa toda com velas de todas as cores (dizias que a tua cor favorita era o arco-iris – esta noite quero o silêncio do arco-iris, o segredo dos potes de ouro podes levar contigo).

Amanhã recomeço, vou deixar de ter razões para olhar o céu, ele vai passar a ser um grande cobertor azul, e começo a traçar vectores de conduta hipodâmicamente pré-definidos. Deixo as ruelas românticas e os lampiões perdidos, esqueço a minha casa e deixo trovejar.

Mato-te, e mato-me a mim contigo. Sobra o meu corpo, que vai ser finalmente parte do mundo dos outros. E ele vai olhar em frente, pode ser que tu faças o mesmo e deixes um corpo também esquecido por aí, pode ser que eles se amem...

Chegaste.

-“Até sempre, princesa...”


14.11.04
*Mó

quinta-feira, dezembro 09, 2004

"Estou no meu nicho. Oh, doce ribeira que me tolhes a alma"


Sucumbem-se os pesares e as magoas milenares...
"a liberdade é uma maluca"....enquanto for verdade que mentir é a salvação dos fracos, dependes de ti e dos que forjaste a tua volta.

falas de amores e de errantes fantasmas, sonâmbulos epitáfios e funerais onde morreste so para que te quisessem ouvir....

por uma vez na tua vida queriam que falasses.

"porquê???"

mas nao respondes.
dizem que a ultima coisa que te passou pela cabeça foi "uma bala". eu sei que não foi assim tão grande o final.

não há finais assim tão grandes, meu amor.

"lugar de supostas trocas....". com que orçamentos se regem os atropelos dos soluços de quem chora quando se casa de madrugada? quando a lua é nova e não testemunha que o frio é dono de ti.
"essa míuda é uma fogueira".morri contigo?

vês como todos olham para ti?
e depois fingem que se atrapalham...como se fossem teias da respiração ofegar quando a luz do fundo da terra se abre sob ti.

e falam tanto. nao os oiço mais, nunca os ouvi. nunca me quiseram com os olhos fechados.

conforta acreditar que pestanejar antes de amanhecer a alma é forçar o corpo a tornear as pulsaçoes mais desalinhadas.

"porquê"???

porque sim, meu amor...porque sim...

sossega, coração...

Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa, 2-8-1933.

nem sei quando me escrevest, mas hoje reli tudo.

"Há coisas que sabemos que não deveríamos perder, eu não te deveria perder, mas a inconmensurável presença de alguém que nem sei se está sequer deixam-me agrilhoado.
Ponto final? Não quero, não pretendo, não me deixes porque encontrei alguém parecido comigo, alguém que me deixa falar e entra nos meus jogos mentais, que joga comigo, que me tem deixado feliz. Não partas, tenho-me contentado e deveras com a tua presença.
Porque é que isto tinha de acontecer?....não costumo acreditar no fado, e aprendo de certo modo a não esperar mais do que devo!

Adoro-te! Stay with me!!!
Sê feliz!

um beijo"

14 de agosto 2003


"You took your coat off and stood in the rain, you're always crazy like that"(...) Posted by Hello

22.09.04..."te digo que te amo"

22.09.04

em frente a este monitor branco,sem o formato A5, atrevo-me ás frases mal pontuadas,sem principio nem fim nem motivo para deixarem de ser ou serem duas vezes iguais.atrevo-me ás minusculas no inicio das frases que vêm depois dakelas que afinal até foram pontuadas e nao pondero se um ponto final por si só pode ser o remate de um acto de respiraçao fonética.

aqui, em frente a este monitor branco, olho para baixo.

tenho um teclado sob os dedos e limito-me a ir carregando nas teclas que brilham mais a cada segundo.
nao penso.
nao faço por nao pensar, senao pensaria mais ainda do ke se nao o tentasse fazer.
e nao digo nada de jeito, provavelmente. mas de jeitos se fazem as coisas menos importantes, e nao dizer nada de jeito pode ser bom pressagio para começar ate um bom texto abstracto. mas isto nao é nem um texto porque nao tem paragrafos nem pontuaçoes bem feitas nem maiusculas no inicio das frases que digam que por algum momento parei e ponderei na letra seguinte.

nao o fiz.

aqui, sentada nesta cadeira com mais idade que eu, em frente a este monitor néon que me cansa os olhos que ardem das lentes de contacto.
tenho de trocar as lentes de contacto, ja me ardem os olhos secos. lapas de silicone com graduaçao...é o que isto é.
mas antes as lentes aos oculos que se sujam e depois é muito dispendioso o tempo que se perde a ver s os oculos estao sujos ou se afinal esta nevoeiro.
nao gosto de confundir o que tenho do que o mundo tem e me dá.
e ter os oculos sujos é muito diferente de o mundo ter nevoeiro para mim.

aqui? mas se este monitor branco néon que arde nos olhos, estivesse ali e eu estivesse ali com ele, o estar aqui era invalido...porque estaria eu ali, e até ali eu diria "aqui, em frente a este monitor branco"...por isso eu nao estou aqui, estou ali visto do ponto de vista de onde estou quando leio isto.

sao 23.07.

pus a televisao no silencio.
ja me inscrevi na faculdade, tenho disciplinas com nomes esquisitos e pus setinha em todas, mesmo nao sabendo muito bem o ke vou aprender, mas eles nao me deixam escolher o que quero aprender. deixam-me por a setinha no quadradinho que quero, mas sei que acabo por por em todos os brancos porque nao existem links em nenhum deles que me levem para um lugar qq em que eu possa ler o programa das disciplinas. e como eu sou uma pessoa com direito a ser comodista, e até pago propinas e tudo, acabo por nao pesquisar o que me tentarao ensinar (ou condicionar) e clico em todas.
menos mal, antes isso que comer formigas, são salgadas.

são 23.10.

a televisao continua no silencio. ta a dar uma telenovela qualquer daqueles que dizem "cara, tô nem aí" e que depois mostram mulheres com rabos rijos e mamas robustas.
geralmente sao loiras, mas tb as há morenas, que a televisao é "um bem de todos"...menos dos putos que vêm os desenhos animados cheios de violência e a sexy hot. porque é como tudo...é como a cultura que é de todos menos daqueles que vivem a 50 kms do pelourinho mais proximo, e para o verem têm de apanhar 7 camionetas...ate disfrutarem desse acto cultural.
a saude também é de todos, a falta dela é que só é de alguns.
e a televisao é de todos, e de todas, porque também aparece de vez em quando um musculado qualquer de olhos verdes que acaba por nunca morrer no final.


são 23.19...

como dizes que costumo acabar em grande os textos...

são 23.20, e aqui, sentada em frente a este monitor branco neon que arde nos olhos, sentada nesta velha cadeira, com essas velhas dissertaçoes, te digo que te amo.

*Mó

terça-feira, dezembro 07, 2004

o que uma pessoa diz..."dizes tu c'us nerbos..."

Não sei se hoje a lua está cheia ou se é normal que ainda tenha a pulsação acelerada às duas da manhã. não consigo perceber o que se passa, também não perderei tempo a pensar no porquê daquilo que pode ser normal se a lua estiver cheia lá fora.

lá fora é tão longe.
e aqui, nesta cadeira, já aqueci o meu lugar.

a televisão está desligada desde as 23:36, hora a que decidi dar-te sinal de vida, a ti, que já foste mais da minha vida que agora.
na altura não disseste nada, mas ás duas da manhã o telefone está-m a tocar nas mãos. não sei se te atenda, não me ligas há muito tempo.

atendo-te.

"estou? estou?"
não estás.
deves ter um telefone qualquer desses de ultima geraçao (não-rasca) que fazem tudo menos as chamadas que tu escolhes...porque tu não ias escolher telefonar-me a mim, já te conheço.
aliás, a última vez que falamos, ou antes, que tentei tirar qualquer coisa da tua voz só consegui que me dissesses que estavas melhor antes de eu aparecer(bem mais valia teres ficado calado), por isso sei que não queres as minhas palavras... és meio autista, meio disléxico, meio criança, todo ingénuo - só por isso é que não te mandei á merda nesse dia.

10 segundos.estou farta de ouvir o teu silêncio, continuas sem dizer nada.quando eu quis que ficasses no silencio comigo tu não quiseste, agora sei como 10 segundos podem ser tempo a mais...
não quero mais ouvir-t calado,
não preciso mais de ti.
foste um escudo ao meu passado, agora és um passado que podia ter sido escusado, e isso é algo que te agradeço: o saber que despareceste tão cedo que não preciso de me preocupar em limpar-te da lista das minhas histórias pouco-extraordinárias.

já tu não vais dizer o mesmo, eu sei que te vais lembrar de mim...quando cresceres, um dia. quando deixares de confundir a lua cheia que existe lá fora (?) com a bola de futebol cor-de-laranja que tens nos pés.

vou tentar dormir, oiço a chuva lá fora, n deve haver lua hoje.espero amanha lembrar-me do que vou sonhar, que estas horas de vida perdidas na cama sirvam pelo menos para ter historias para contar, ou para esquecer, que seja.


29.05.04

domingo, dezembro 05, 2004

"é que hoje acordei e lembrei-me..."

Para ver
Para dar
Para estar
Para ter
Para ir
Pra ouvir,
Pra sorrir
e entrar
Para rir
Pra voltar
A tentar
Pra sentir
E mudar
Pra voltar a cair
Para me levantar
Para nunca mais tentar
Mentir

Pra crescer
Para amar
Para ser
O lugar
Pra viver
E gostar
De gostar
De viver
Pra fugir
Pra mostrar
Pra dizer
Pra ter paz
Pra dormir
Pra fingir acordar
Para ser
Derramar
Para nunca mais tentar
Mentir


ornatos violeta

sexta-feira, dezembro 03, 2004

A balada de um estranho

há dias em que custa abrir a janela. há dias em que te parece que havia antes maneira d a abrir e ja nao te lembras de como se faz.
desliga o bip bip do relogio. e adormeçe outra vez.
que quando acordares o céu continua no mesmo sitio, mas tu ja tens mais experiencia...

Palma....a banda sonora perfeita quando não é perfeito abrir os olhos...ou quando é.



Hoje acordaste de uma forma diferente dos outros dias
Sentes-te estranho
Tens as mãos húmidas e frias

Tentas lembrar-te de algum pesadelo
Mas o esforço é em vão
Parece-te ouvir passos dentro de casa
Mas não sabes de quem são

Deixas o quarto
E vais à sala espreitar atrás do sofá
Mas aí tu já suspeitas que os fantasmas não estão lá

Vais à janela e ao olhares para fora
Sentes que perdeste o teu centro
E de repente descobres
Que chegou a hora de olhares para dentro

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu

Vês o teu nome escrito num envelope
Que rasgas nervosamente
Tu já tinhas lido essa carta antecipadamente

E os teus olhos ignoram as letras
E fixam as entrelinhas
E exclamas: "Mas afinal... estas palavras são minhas!"

O caminho para trás está vedado
E tens um muro à tua frente
E quando olhas prós lados vês a mobília indiferente
E abandonas essa casa
Onde sentiste o chão a fugir
Arquitectas outra morada,
Mas sabes que estás a mentir

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu

Jorge Palma

quinta-feira, dezembro 02, 2004

auto-retrato


(...)
Acordo assim todos os dias
em que não acordo de outra forma,
mas tenho sempre as mãos frias
e não tomo banho de água morna.

Ou não acordo,
simplesmente,
deixo-me ficar deitada a cochilar...

a noite e o dia nem são diferentes,
e efectivamente...

Para quê acordar e lavar os dentes
se passo o dia a sonhar?

(14.10.04) Posted by Hello

às vezes escrevo só por escrever...

como se as palavras fossem
escudos dos olhos mudos
que tento esconder.

E tenho uma tristeza tão profunda...
uma solidão que vem
de quem fica de fora,

numa espera sem demora....

esta solidão oriunda
do minuto sessenta da primeira hora
antes do meu corpo fechar nele próprio
a minha premissa primordial:

deito-me na posição fetal,
respiro para dentro e tento
não deixar o ar sair

e escrevo para dentro,
deixo-me fugir.
(...)

04.11.04 Posted by Hello

A ponte já é velha
e o casario esconde-se
por trás desse céu que desceu
e fez batota...
Mas esse rio é só teu
e dos anjos desta neblina...

Dança, gaivota!
Baila, menina!

E pergunta a quem
por ti passar
se também sabe voar.

Se alguém te disser
que passei os dias
e as manhãs frias
a olhar-te daqui,

saberás que és
a minha espera...
das manhãs em que deambulo por aí.

Em que voo até ti.

26.10.04Posted by Hello

embalo Posted by Hello

praia Posted by Hello

"a noite passada" - sergio godinho

A noite passada acordei com o teu beijo´
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorristeabriste a janela e voaste
A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos
A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"